Vou terminar esta minha apreciação do livro Misericórdia, de Lídia Jorge, fazendo alguns comentários a alguns dos conteúdos que me suscitaram interrogações e vontade de dialogar com a autora e com as personagens. Por isso, não estarão aqui muitas passagens que também tiveram um impacto fortíssimo em mim, que me deixaram maravilhado… mas silencioso, a compreender e a assimilar! Naturalmente que essas passagens constituem um número incomensuravelmente maior do que as que aqui exponho.
(41/2)
(…) quis, então, saber um pouco da minha vida, mas eu não lha iria contar. Nem eu quis que me contasse a sua. Sou muito velha, sei que o encantamento deve ser conservado em seu próprio vaso, de contrário transborda e desfaz-se em nada. (…)
Ou seja, não deixar avançar a intimidade, mas num contexto muito particular, o da literatura. Pergunto-me se esta ideia não se aplicará àquela que deve ser idealmente a relação do escritor com o leitor.
(42)
Veja-se como Lídia Jorge descreve o efeito que a leitura em voz alta tem sobre o ouvinte e sobre a relação entre os dois: cria uma relação afetiva a partir do zero, ou reforça-a, se ela já existe. Não menos importante, contribui para transformar o feio em bonito. Em suma, quando quisermos alcançar estes efeitos, leiamos para os outros.
Eu e a minha mulher fazemo-lo. Neste momento, ela lê-me a Eneida, de Virgílio; e eu leio-lhe Contos, de Vergílio Ferreira. Um prazer imenso.
Ainda nesta mesma página, Lídia Jorge descreve os efeitos maravilhosos de uma segunda leitura (o que faço muitas vezes e fiz com Misericórdia, como já disse).
Ainda mais um pormenor: sei qual é o livro, e o conto, a que a autora faz referência. Porque é um dos livros de referência na minha vida. E que tem sido ao longo dos anos uma prenda minha para muitas pessoas, nomeadamente jovens. Porque Luís Sepúlveda mostra como qualquer pessoa, por mais modesta e insignificante que seja neste mundo, pode ser alguém verdadeiramente especial. Salve, Professor Gálvez, na obra As Rosas de Atacama.
(70)
(…) Não é possível dispor de um objecto secreto onde tudo é visto e revisto, pesquisado e inventariado pelos olhos dos outros, pois aqui onde me encontro nenhum canto é meu, nenhum objecto me pertence, até mesmo o meu corpo não é mais um recanto privado da minha alma (…).
Sempre este (quase) perfeito paralelismo entre idosos e crianças. Só que se isto fosse descrito por uma criança, nestes mesmos termos, não acreditaríamos nem perceberíamos. "Coisas de crianças!", diríamos. Muito possivelmente devido aos imensos preconceitos que mantemos em relação às crianças. Reflicto que, se é verdade que muitos de nós já evoluímos em relação a outros grupos de pessoas, quanto aos preconceitos relativos às crianças ainda temos um longo caminho a percorrer.
(73)
Mas hoje foi um dia simplesmente belo. (…) aprendi que uma alma que se eleva, eleva o mundo. (...)
Estou tão, mas tão de acordo!
É preciso sublinhar que este é um livro também sobre a beleza. Sobre como a criar e como a manter. Eu avanço com a sugestão de que este percurso pode ser iniciado lendo livros como este. E, depois, fazendo qualquer coisa, por mais simples que seja:
(…) Porque nós não mandamos no conjunto das nossas feições, nascemos ou não nascemos harmoniosos, não mandamos em nós, mas na composição dos objectos, sim, podemos mandar.
Sim, mandamos pouco em nós, uma vez que se sabe atualmente que:
Na verdade, cerca de 98 por cento do que os nossos cérebros estão a fazer está abaixo do nível de consciência. [George Lakoff, Don’t Think of na Elephant (2014), p. xi]
Praticamente, não mandamos nas nossas emoções, mandamos pouco nos nossos pensamentos, mandamos alguma coisa nas nossas ações, e mandamos algo mais nos objectos exteriores, ou seja, nos contextos em que nos movemos. É, portanto, nestes que devemos começar por intervir a fim de criar e aumentar a beleza do nosso mundo. Sem deixar de cuidar das nossas ações, pois elas influenciam profundamente quer os contextos em que vivemos, quer os nossos pensamentos e as nossas emoções.
(109)
São muitos os exemplos de falta de misericórdia que aparecem neste livro. Eu diria que servem para nos chamar a atenção para a necessidade que todos temos dela. E para as situações e pessoas que mais dela precisam – idosos e crianças.
Sim, volto a este aspeto: as personagens deste livro são velhos. Mas reparemos na reação da filha de D. Alberti na página 83, e temos ali uma criança a reagir ao mondar das «ervas bravas», segundo palavras da mãe. Note-se que a filha reage assim porque a mãe trata-a como uma criança, não lhe deixando muita liberdade para ela poder ser adulta. Quantas vezes tratamos as crianças como crianças mais infantis e, depois, surpreendemo-nos quando elas reagem demasiado infantilmente!
(115-117)
Comovente autorretrato da filha escritora. Até que ponto Lídia Jorge real se identifica com Lídia Jorge escritora e esta com a personagem da filha? Creio ser esta talvez uma curiosidade legítima do leitor. No entanto, isso não significa que me pareça que o leitor tenha o direito de invadir com esta pergunta a privacidade de Lídia Jorge. Portanto, não penso alguma vez perguntar-lhe isto.
(129)
Aqui se mostra o poder profundo, e que perdura, das palavras. Em particular, dos rótulos pessoais. E, principalmente, das metáforas também pessoais. Às vezes, somos descuidados com o que dizemos. Muitas vezes, não nos apercebemos do impacto que temos sobre a vida dos outros apenas pelo que dizemos, especialmente se for negativo.
(141)
(…) Agora, atenho-me a um breve recado, duas linhas mal anotadas, (…)
Falar e escrever são duas atividades diferentes. D. Alberti fala e, depois, escreve um pequeno texto.
Falar pode ser para desabafar, para aliviar o peso da vida, para “espantar males”, às vezes para esquecer. Também se pode falar para aprender, o que também se pode fazer com a escrita. Esta serve também para registar, para tornar definitivo, para estarmos mais presentes na expressão do que pensamos e sentimos (falar acaba por ser mais “aéreo”).
Assim, percebi neste ponto que, escrevendo, D. Alberti não tem de fazer sentido para ninguém, mas apenas para si mesma. E que estes textos podem ser gritos interiores que D. Alberti em voz alta não se atreveria talvez a dar.
(144)
(…) mentir pelo amor deles, mentir para salvar a decência das suas vidas. (…)
A ética nem sempre depende da qualidade dos atos em si, despidos do contexto em que nascem. Mentir pode muitas vezes ser um ato profundamente ético.
Já agora, acredito que é a ética que dá uma grandeza insuspeitada a quem ocupa os degraus mais desamparados e mais baixos da escala social. Como acontece com D. Alberti, cuja resistência nasce dessa ética a que ela aderiu, possivelmente para se manter elevadamente viva.
Resistência muito patente num dos meus capítulos preferidos, Na Fila (172). Ou seja, fora da fila, de todas as filas. Sem autoridade, mas sem desistir, embora com tristeza, que é como deve ser. D. Alberti é “castigada”, mas não diz nada, não chora… Quantas crianças procuram também deste modo preservar as últimas réstias de dignidade que os adultos lhes procuram roubar?
Sim, às vezes há que escolher entre viver bem e viver com dignidade - D. Alberti procura, à custa de uma luta árdua, optar sempre por esta última.
(184 e 185)
«(…) Como sabem, eu chamo-me Débora, e estou aqui para falarmos de alegria…» Eu senti-me triste, sem ter razão de quê. A psicóloga continuou (…)
Porque o forçar a positividade, seja de que forma for, tem o efeito paradoxal de muitas vezes evocar e tornar presentes os sentimentos mais negativos. É um fenómeno muito estudado na psicologia, principalmente depois do “boom” das “afirmações positivas” de há alguns anos (a ciência descobriu que elas raramente funcionam no sentido esperado).
(188)
A psicóloga Débora falha porque ela, tal como muitas vezes fazemos com as crianças, não pergunta o que as pessoas querem ou desejam. Ela assume que sabe o que é melhor para elas e impõe a sua agenda… na qual não há ninguém que esteja interessado. Veja-se também como o capítulo 45 – O Fotógrafo (272) mostra o mesmo.
(210)
(…) Ainda que de modo diferente, por certo todos pensávamos que a situação demonstrava a dimensão da nossa dependência, a revelação da nossa fragilidade. (…)
Todo este livro, em particular aqui, evidencia a interdependência entre seres humanos. Aqui fala-se dos idosos no lar, mas esta realidade estende-se a todos os seres humanos e a toda a Natureza. A visão meritocrática de uma sociedade esconde isto dos nossos olhos.
Assim, a pessoa que acredita na meritocracia pensa que o mérito é individual e não depende de outras pessoas nem dos recursos que são postos à sua disposição (e pelos quais ela nada teve de fazer ou de comprar para os obter). Esta visão é profundamente errada e catastrófica para a saúde de uma sociedade. Porque, entre muitas outras razões, isola as pessoas e esgota os recursos.
(254 e 255)
Porque eu mesma havia terminado a conversa e quebrado o riso? Porque os tinha mandado embora? (…) Quebrei os risos e sinto que destruí a minha felicidade. (…)
Porque lidamos tantas vezes mal com a alegria? Será que sempre lidámos mal com ela? Não é a alegria um atrator e um repositório para todos os benefícios? Que mal tem ela?
Que os poderosos abominem a alegria, percebe-se: ela escapa ao seu controlo e é subversiva.
Mas nós, cada um de nós, o que se passa quando, por exemplo, fechamos a cara à alegria de uma criança? Ou nos escandalizamos quando vemos um adulto ou um idoso alegres, e rapidamente atribuímos a sua alegria a um consumo excessivo de álcool?
Que característica, que qualidade foi destruída dentro de nós, para termos deixado de ser capazes de reconhecer a alegria pelo que ela é de facto, ficando em consequência incapazes de a fazer nossa também?
Estas são as interrogações que acrescentamos às interrogações angustiadas de D. Alberti. Sem termos uma resposta satisfatória.
(376)
(…) Como se eu merecesse, tinham misericórdia de mim. Eu aceitava. (…)
(445)
(…) Misterioso é o sentimento da misericórdia, não tem hora marcada para entrar ou sair do ser humano. (…)
Misericórdia - uma obra deslumbrante que, mesmo passado muito tempo depois de ser lida, fica para sempre no nosso espírito, não o abandonando mais.